domingo, 27 de março de 2011

Os profetas do século XX no Nordeste: Comblin e Côrtes (José e Lula).
















Os profetas do século XX no Nordeste: Comblin e Côrtes (José e Lula).

Por Eduardo F. (Paraibucano, jogador de palavras virtuais e vivenciador das lembranças traçadas em Bayeux e Sumé)

No ano de 1994 minha formação musical mudou radicalmente, os discos e fitas de heavy metal, punk rock e rock n´roll, foram trocados por uma enxurrada de músicas, cantores/as e autores/as nordestinos, o primeiro deles que tomar conta das minhas horas e reflexões foi Zé Ramalho, o disco intitulado Força Verde (1982) tornava minha compreensão política e social ampliadas, escutei tanto que sabia as músicas decoradas, descobri o forró, o galope, Zé Limeira, o monte Olímpia (morada dos deuses e dos loucos) e que os cristais do tempo eram as crianças.

Nesse rastro descobri enquanto bom paraibucano os antecedentes fonográficos de Alceu Valença, Geraldo Azevedo, Xangai, Zé Ramalho, Jaguaribe Carne e Lula Côrtes, um movimento que denominei de “psicodélica intervenção nordestina”, o nordeste era mais rico que minha compreensão. Em Recife o “movimento udigrudi”(underground), era a ponte que faltava para minha completa percepção dos espaços territoriais que trafegava nas viagens entre Recife-João Pessoa nos anos de 1993-2001, de longe percebi que não era mais o mesmo, e de perto que ainda era o de sempre, inquieto, crítico, sarcástico e notívago.

O ápice desse momento musical no nordeste é o afamado disco Paêbirú (Zé Ramalho e Lula Côrtes), fato que descobri apenas anos mais tarde, o disco tem a música Beira Mar e crava um experimentalismo que transita entre a música clássica (referencia à Villa Lobos são constantes), a complexidade visual da produção onde são apontados os elementos Terra, Fogo, Água e Ar, o encontro entre o rock n´roll com regionalismo aboiador, e por fim, uma concepção de ruptura, visto que, o lançamento foi independente, assim como, sua quase completa inacessibilidade, em face das enchentes que varreram a fita original e cópias de lp´s, restando apenas 300 cópias.

Até o ano de 2009, de acordo com a Revista Rolling Stones (Edição 24, matéria de Cristiano Bastos, intitulada Agreste Psicodélico), o vinil era considerado o LP mais caro do mercado brasileiro, uma relíquia, raridade de uma época de total transgressão e desobediência ao que estava posto enquanto música brasileira, tanto que é considerado por alguns especialistas uma dimensão tão importante quanto a revolução protagonizada pelo tropicalismo, como sabemos, o tropicalismo conquistou espaço na crítica, memória registrada e novos mercados no final do século XX, enquanto o outro ficou para deslumbramento de quem busca rastros de seus ícones regionais.

De toda essa movimentação em torno de Paêbirú destaco a difusão das rochas de Sumé (PB) e suas inscrições, a percepção histórica e antropológica dos caminhos traçados pelos índios cariris ampliando a compreensão do domínio cristão sobre as regiões do interior nordestino, a visita de Dom Pedro II na Paraíba e por fim rompendo para uma nova perspectiva um documentário de 2009 intitulado Nas paredes da Pedra Encantada.

Em meados de 1999 minha opção profissional foi redimensionada radicalmente, talvez os sons, a literatura, os gritos, as relações sociais, transformaram um estudante de direito insatisfeito com o curso escolhido, para rapidamente presenciar e participar de mundo novo, com conceitos, práticas, reflexões e efervescência que desafiavam o óbvio. Inserido na advocacia popular e catapultado a temas como direitos humanos, militância social, direito crítico e alternativo, desobediência civil, transgressão proativa, políticas públicas, sistemas internacionais, marxismo, feminismo, cristianismo social e outros, chego por esses caminhos até a teologia da libertação, a transgressão cristã impulsionada na América Latina nos anos de 1960-1980, época da formulação musical psicodélica interventiva nordestina, aproximações especulativas, porém, momento político igual.

Na minha “tomada de consciência” imaginava mudanças estruturais na sociedade, na economia, nas relações humanas, na política, seja no campo, como na cidade, acreditava que tudo estava no seu ápice, recém passados da ditadura militar, da construção de uma constituição cidadã e do movimento “caras pintas”, as grandes revoluções estavam logo ali, unidos contra a Alca, fortes e articulados contra a criminalização dos militantes dos movimentos sociais, passeatas e romarias que aglutinavam centenas de bandeiras, acampamentos em praças públicas , enfrentamentos contra a opressão, surgimento da Venezuela em um novo cenário, Cuba, siempre, custa um debate, a fragilidade do imperialismo, caem as torres, novas ordens mundiais made in China, músicas dos anos de chumbo, mangue –sou, sou mangue boy, desafio ambiental após Rio-Eco 92, articulações locais, nacionais, internacionais, moratória ao FMI, eleições – quase lá mais uma vez, lá pela primeira vez.

Obviamente que nossas narrativas e impressões sociais passam necessariamente pela nossa compreensão e existência enquanto ser político, a convicção e vivências em alguns espaços e relação pode gerar uma gigantes euforia, tamanha credulidade em nossa sinergia que nada parece nos segurar, estava tudo pronto, lia e relia o mundo, tudo a volta seria alterado, alteridade, multidisciplinariedade, fim da modernidade, Paulo Freiriando.

Ao ler um texto de um Padre Belga radicado na Paraíba, senti que estava ainda engatinhando em vários processos e sequer uma perspectiva conjuntural ainda era possível sinalizar, alertou por suas linhas o Padre Comblin: A América Latina mudou em trinta anos. De uma situação de opressão, passou para uma situação de exclusão. A população duplicou. Quase a metade da população migrou do campo para a cidade Porém, não sabe o que fazer na cidade. Acumulou-se uma imensa riqueza, mas concentrou-se numa minoria de privilegiados...A libertação torna-se, ao mesmo tempo, mais urgente e mais remota. Há trina anos tudo parecia simples. Agora tudo parece complexo.
Chocado e inconsolável ao escutar algo que não queria ouvir, a resistência ao confronto das idéias, a visualização de uma amplificação de pautas de movimentos, fragmentação irretroativa, novos mundos, competição de organizações não-governamentais, rumo ao associativismo, as dívidas e as burocracias, avante o cooperativismo, resignado aguardando opções, agora são múltiplos sentidos, são muitos os livros, são gigantes demais as linhas que nos interne-teiam, comunicações atravessadas, Avalora e Cidade de Deus, são dos Lins, são tantas preocupações.
Era a volta de Paêbirú ou a imersão nele, era necessário cair no mundo, visitar do Rio de Janeiro, Garanhuns, Salgueiro, Brasília, Palmas, Goiana, Itambé, São Paulo, Florianópolis, Conceição, Oriximiná, Macapá, Salvador e o voltar pelo Conde, sentar em Recife para depois retornar ao outro lar em João Pessoa.

Era necessário viver, para poder estudar, era preciso sentir para poder criar, era o desafio entre o técnico e o popular, a luta do lúdico e a firmeza em atuar, escutar mais para ter condições de falar e falar para não deixar de ser ouvido, era hora de scannear.

Durante uma especialização em direitos humanos (CCHLA/CDH/UFPB) no ano de 2003, resolvi encarar um desafio, entrevistar padres ligados a questão da reforma agrária, queria entender de onde eu vinha, onde eu estava, para que lugar estava indo, com quem compartilho sonhos e sequer não são originalmente meus, seus ou deles, pois, encontrei “muita gente se arvora a ser Deus,e promete tanta coisa pro sertão, que vai dar um vestido pra Maria,e promete um roçado pro João, entra ano, sai ano, e nada vem, meu sertão continua ao deus-dará, mas se existe Jesus no firmamento, cá na terra isto tem que se acabar.”( Procissão de Luiz Gonzaga).

E buscando nas procissões, romarias, contatos e nas entrelinhas, conheci o Padre Comblin, o tal belga, que me colocou para pensar, então era hora de entrevistá-lo, quando encontrei aquela força de pessoa, apesar de ter mais de oitenta anos, um vivacidade iluminada que continuava a prestar assessoria a diversas entidades de formação de lideranças populares no Brasil, assim como orientação teológica a grupos no Nordeste, Brasil e América Latina.

O Padre Comblin se mostrou muito ativo fisicamente e mentalmente, demonstrando sempre uma viva critica ao modelo neo-globalizante, as empresas multinacionais, ao Partido dos Trabalhadores, a Igreja, perpassando em cada temática por análises das condições sociais, econômicas e políticas conjugas por as reflexões filosóficas e teológicas, impossível não perceber um refinado senso de humor e pessimismo esperançoso.

Essas duas últimas impressões, apenas quem teve a oportunidade de conhecê-lo pode dimensionar, apenas com as obras escritas, entrevistas e aulas em todo mundo, tais nuances podem passar despercebidas. Recordo que a entrevista durou duas horas e meia, porém tão rica quanto à entrevista foi cerca de uma hora em que conversamos com o gravador desligado, tomando suco e comendo biscoitos amanteigados.

Joseph Comblin, ou Padre José Comblin , nasceu em Bruxelas na Bélgica no dia 22 de marco de 1923. Foi criado com valores rígidos e tradicionais da religião e da valorização do trabalho. Entrou no seminário em 1940 em Lovaina na Bélgica, estudando Ciências Biológicas e Filosofia até o ano de 1942. Em 1943 seguiu para o seminário São José em Malinas onde curso do I ao III ano de teologia; entre 1946 e 1950 cursou a Faculdade e Teologia em Lovaina, tornando-se Doutor em Teologia . Entre 1968 e 1972 começou a dar aulas no Equador, sendo professor de Teologia no Instituto Pastoral Latino Americano (IPLA); de 1971 e 1988 lecionou na Faculdade de Teologia da Universidade Católica de Lovaina , sem dúvidas um dos maiores escritores da Teologia da Libertação no mundo.

Destaco algumas das passagens que no ano de 2003/04 durante nosso contato consolidaram algumas questões na minha perspectiva de vida, assim como, aprendi a fazer as perguntas certas, ao invés de procurar a resposta, após 07/08 anos, sua capacidade profética é inquestionável: “Hoje em dia não se fala mais em transformação, até o PT se transformou em capitalista, não se imagina em transformação social, em alguns lugares se fala de reforma agrária, como na CPT, mas todo mundo sabe também que do outro lado o MST nunca vai fazer uma revolução contra Lula. O governo conseguiu congelar todos os segmentos sociais, então serão oito anos acabando com os movimentos sociais, é a mesma coisa quando abafam a Teologia da Libertação dentro da Igreja. A Teologia da Libertação também é afetada, é claro, por movimentos que se dizem nascer dela, mas não criam nenhum antagonismo social. Tudo assim de uma só vez dito parece confuso, mas tudo está o tempo todo acontecendo, assim também teremos o fim do latifundiário incompetente, por que vai ser engolido pelas industriais multinacionais que vão plantar muito milho e soja, todos transgênicos é claro. Tudo que falei é pensar na forma de situar e agir em longo prazo, a população vive hoje manipulada pela televisão, todos confundidos (...) Ainda hoje é a mesma coisa, pouca coisa mudou, ainda tem o latifúndio e não se fez a reforma agrária, e pelo visto ainda haverá por muitos anos. Veja bem aqui no Brasil, Lula já desistiu da reforma agrária e vai ficar sete anos sem fazer reforma agrária, depois no dia que todas as terras estiverem nas mãos de grande empresas multinacionais quem vai falar de reforma agrária na terra da soja? (...) Que Governo popular é este que no seu primeiro ano vai até DAVOS e diz exatamente o que aquelas pessoas queriam escutar? Falou da fome, miséria, da ajuda internacional, não falou da mudança das estruturas financeiras, dos grandes esquemas de corrupção empresarial e no final chorou um pouco, você quer coisa que rico gosta mais do que ver gente chorando? Do PT eu acho que não se pode esperar nada, acho que vivemos nas trevas, no Brasil e no mundo. Mas eu espero uma aurora, de algum lugar tem que sair (risos) sempre saí, temos que agüentar, mesmo que muitos caiam e se convertam ao sistema vigente.”

O que registrar nesse momento que os profetas não habitam mais as nossas vidas?Quais os ensinamentos dos segredos talhados por Sumé? O nome Sumé da pedra e da cidade que resistiu a Igreja Católica quando propôs e estimulou o uso do nome de São Tomé para apagar vestígios de uma “religião pagã”, a mesma religião da qual surge na Bélgica no começo do Século XX um teólogo que irá atravessar o atlântico para voicerar sua opção pelos pobres, sua radicalidade em palavras mansas e escritos provocantes, onde se encontram Comblin e Côrtes? Cada um de sua forma fez música, cada um do seu jeito produziu seguidores, cada um com sua imersão fantástica catalizaram e multimensionaram nossas pequenas vitórias, angústias e dúvidas, para uma largueza solidária e pulsante.

Na minha trajetória consigo perceber, entender, relacionar, estimular na memória mesmo que com suas cargas emocionais estimuladas ao extremo que ainda temos tempo para ouvir músicas que nos transportam para outras dimensões, ler escritos que movem o senso comum para uma perplexidade perante o mundo e as pessoas.

Ao José e ao Lula, muito obrigado pelas experiências compartilhadas, os segredos talhados nesse ser humano que não se contenta a ser o mesmo todos os dias, mas não perde sua folia e indignação, são pequenos Sumés e Avarzeados, saltitando nas virtualidades e ações de um paraibucano que um dia será letrado e musicará sua compreensão.

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Maria saiu e voltou.



















Maria saiu da esquina, pulou no assoalho: - É vivida!É vivida!

Do beco correu um segredo...O olho longo disparou o cílio postiço .

Alcançá-la é tentativa sem sucesso maquinou o botão com seu casa.

Espiou e sussurrou: (...)

Retornou ao ventre...

“Te aquieta Maria, te aquieta...ainda não é teu dia”.

Era apenas mais um dia, uma conquista, daquelas que pulsam as vísceras.

domingo, 21 de novembro de 2010

“A coisa aqui tá preta”: Uma rápida contribuição à construção da consciência histórica negra






“A coisa aqui tá preta”: Uma rápida contribuição à construção da consciência histórica negra - http://racismoambiental.net.br e/ou http://dignitatis-assessoria.blogspot.com/

Por Eduardo F. (Nem tanto afrocentrado quando poderia, nem tão obcecado que não se permite escutar muito choro, samba e o rock ‘n´roll).

Texto em Homenagem as Crioulas e os Crioulos de Conceição (quilombo vivenciado nas alegrias e tristezas).

No ano de 1975, Chico Buarque lançou o LP “Meus Caros Amigos”, obra com músicas de extrema relevância política, entre elas “O que será? (À Flor da Pele)”, da qual o dueto com o amigo Milton Nascimento ainda é citado como uma das mais belas parcerias da música brasileira. No mesmo LP, músicas relevantes, como Mulheres de Atenas, Olhos nos Olhos, Vai Trabalhar, Vagabundo e Passaredo.

Em uma das “tabelinhas” do LP com Francis Hime, Chico Buarque compôs “Meu Caro Amigo”, que em uma das suas estrofes assevera que a coisa tá preta: “Aqui na terra ‘tão jogando futebol/Tem muito samba, muito choro e rock’n’ roll/Uns dias chove, noutros dias bate sol/Mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui tá preta/Muita careta pra engolir a transação/E a gente tá engolindo cada sapo no caminho/E a gente vai se amando que, também, sem um carinho/Ninguém segura esse rojão.”

Nesse período histórico e político brasileiro, a Ditadura campeava sua enfurecida frente contra os grupos, partidos e movimento de esquerda, que em parte, entendiam que a única saída do processo ditatorial seria através da luta armada.
Os militares, com o Poder Executivo nas mãos, criavam tipos penais através de Atos Institucionais, possuidores das rédeas eleitorais; promoviam o controle do Poder Legislativo; de quebra, através de nomeações e influência política, determinavam o funcionamento do Poder Judiciário e do Ministério Público. Por fim, utilizavam da mídia escrita e televisiva para transmitir à população brasileira os atos de terrorismo, de subversão, de anti-patriotismo e heréticos, praticados principalmente por jovens de diversas camadas sociais. Mera coincidência com o processo eleitoral no âmbito nacional em 2010?

De toda sorte, outras formas de resistências organizavam suas bases de atuação teórica e intervenção prática, ou melhor, re-organizavam de maneira mais orgânica a materialidade e subjetividades nas insurgências constituídas e sufocadas no período colonial, imperial e da República Velha.

Articuladas pelo signo da identidade (étnica e/ou cultural), os povos originários e o movimento(s) negro(s) urbano entravam mais uma vez no cenário político nacional, posicionando-se enquanto primeiros movimentos sociais do Brasil, visto que as lutas dos indígenas e da população negra não eram/são prestigiadas na história oficial. Cotidianamente foram soterradas, e mesmo as vanguardas progressistas das esquerdas brasileiras não utilizavam os discursos, as práticas e/ou as potencialidades destes atores socais enquanto tentativa de compreensão de uma realidade brasileira diversificada. Esses silêncios políticos também aconteceram em relação ao movimento feminista e ao movimento LGBT (essa diversidade sequer era pautada). Ao que parece, essas linhas tênues estão sendo articuladas com algumas aproximações, estranhamentos e necessitando ampliar respeito à autonomia e diversidade das contribuições subversivas. De toda sorte, é notório que essas (re)leituras estão em prática e incomodam setores conservadores.

No tocante à movimentação política dos/as negros/as, um dos baluartes é o Professor Abdias Nascimento, um dos responsáveis para a retomada do tema/expressão quilombo e da identidade negra em uma perspectiva local-internacional. As propostas de Abdias Nascimento não são apenas de vigor social, cultural e econômica, mas também inauguram no Brasil uma perspectiva que se diferenciava das leituras tradicionais das esquerdas brasileiras.

Abdias Nascimento trouxe para o Brasil os debates enfrentados nos EUA, nos anos de 1960-1970, em torno das políticas de ações afirmativas, o pensamento de lideranças políticas e a postura dos Panteras Negras, assim como auxiliou a difundir o pan-africanismo enquanto perspectiva teórica e prática.
O professor ainda foi diretamente responsável pela criação da Fundação Cultural Palmares, lançou a discussão em torno do Quilombismo/ Estado Quilombista e da integração entre o Brasil e África. As repercussões de suas leituras e perspectivas foram marcantes para que a militância negra que associasse em torno dos quilombos a sua representação simbólica de resistência, emergindo o nome de Zumbi e de Palmares enquanto elo vivo de pertencimento de África no Brasil. Não por acaso, o dia 20 de novembro (hoje) é o Dia da Consciência Negra – morte de Zumbi.

O surgimento do Movimento Negro Unificado é um dos componentes históricos, no Brasil dos anos de 1970, importantíssimo para a (re)construção da identidade negra. Por justiça histórica, é importante sinalizar a Frente Negra Brasileira (1930), grupos de mobilização da Bahia (Ilê Ayê, Oludum e outros), escolas de samba no Rio de Janeiro, as nações de maracatu em Pernambuco, os grupos literários e os trabalhos acadêmicos realizados pela Escola Paulista de Sociologia entre os anos de 1950-1960,
que também são inexoravelmente parte desse caldo cultural, acadêmico e político.

Importante destacar que pouco (apesar de uma melhora significativa nos últimos dez anos) se discute seriamente no Brasil tais nuances. Sempre essas temáticas estão contidas em uma dimensão econômica, conjuntural, estrutural, ideológica, que se apresenta diante da realidade enquanto maior e objetiva, diante do menor e meramente subjetivo. Óbvio que a dicotomia não é tão direta, nem se excluí o componente classe nessas relações. O que é necessário apresentar são as confluências e contradições de algumas assertivas deterministas de ambos os lados.

A academia ajuda sobremaneira em manter essa posição subalterna dos temas identitários, seja por puritanismo/ingenuidade (quando à discussão recai sobre as cotas é senso comum a aprovação destas para os “pobres” e não para os/as negros/as, indígenas e outros segmentos, que são em grande maioria componentes desta camada social excluída ou incluída em um modelo predatório de produção, consumo e sustentabilidade), modismos e/ou por tentativa de manter um espaço autoritário de construção do saber, sempre visceralmente ligada às tradições européias, onde a pretensão de estabelecer qualificações, conceitos, elementos e significados não conseguem apreender a diversidade e vigor do pensamento sul-sul. Desta forma, são desqualificadas teorias, reflexões e ações; são “denunciados” por não formar grupos não uniformes; apontados enquanto “rachados”, apolitizados, barganhadores por mero uso simbólico do poder nas estruturas governamentais etc.

Por falta de um maior discernimento das perspectivas alavancadas pelos movimentos culturais ou étnicos, pouco se demonstra que um impulso significativo para a viabilidade política e social do movimento negro foi o entendimento da questão de gênero dentro das suas singularidades. Milhares de mulheres negras atuam/atuaram em espaços políticos em virtude desta visão amplificada dos processos de formação de identidade. As nossas líderes de Conceição das Crioulas são a materialização desse vigor. A discussão de gênero ganhou muito mais destaque dentro da militância negra (vice-versa) do que em outros movimentos sociais (sindicatos, partidos e de luta pela reforma agrária).

Voltando ao Professor Abdias Nascimento, é imprescindível citar que o mesmo foi Deputado Federal e Senador, exerceu docência em Universidades brasileiras, americanas e européias, assim como foi um dos principais criadores do Teatro Experimental do Negro, que tinha como foco a representação do negro em processos de resistência social e afirmação étnica/racial, abordando, principalmente, os apenados do Estado de São Paulo.

A preocupação do Professor Abdias sempre foi pautada na urgência do passado em processos que possibilitassem a reconstrução de uma memória negra no presente, ou seja: “é urgente a necessidade do negro brasileiro recuperar memória, sistematicamente agredida pela estrutura de dominação ocidental – européia há quase 500 anos”(NASCIMENTO,1994).

As contribuições de Abdias Nascimento são designadas por uma categoria de análise-ação “pan-africanista nascimentista”, através do qual o pensamento global pan-africano toma outras dimensões em terras brasileiras e caribenhas.
Enfim, somos mais “sabedores” e “saboreadores” da vida e obra de Chico Buarque do que de vários artistas e compositores negros/as de samba que influenciaram diretamente as formas de composição dos expoentes da MPB nos anos de 1920-1980. Nas narrativas dos movimentos sociais brasileiros, o movimento negro, feminista e dos indígenas ainda são categorizados enquanto novos movimentos (até pejorativamente de pós-modernos). Chico Buarque cravou em Meu Caro Amigo a expressão “a coisa aqui tá preta”. A associação é sempre direta ao período da ditadura militar ou algo negativo no cotidiano. Porém, podemos interpretar “a coisa aqui tá preta” e nos posicionar vivenciadores de um momento muito rico na constituição da luta pela igualdade racial no Brasil. Conhecedores mais de Sartre, Foucault, Marx, Weber, Comte ou Maquiavel do que … pois é, a coisa ainda tem que ficar preta!