terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Brasil : A lagoa dos Negros







Foto cedida pela ARQMO - Associação Rural de Quilombolas e moradores de Oriximiná em visita realizada no ano de 2008, nas conversas com moradores das comunidades, uma história parecida com essa narrada pelo Ribamar (texto a seguir) foi relatada pelos mais novos e mais velhos.

A história consiste na criação dos primeiros quilombos da região, em uma "queda" talvez parecida com essa da foto, um navio negreiro ficou afastado durante alguns dias enquanto esperava diminuir a correnteza para retornar, em determinado momento um motim dos africanos tomou conta do navio, este sob controle dos africanos, foi jogado na "queda" com a tripulação branca, os africanos se separaram por grupos étnicos e cada qual buscou sua rota de fuga e mais adiante lugar para montar sua comunidade.

Durante vários anos, as comunidades se comunicavam pouco, tomavam conhecimento através de alguns grupos indígenas de que haviam fugitivos de todas as regiões do norte/nordeste em busca dos locais desses primeiros fugitivos.

Na mesma história é narrada o desaparecimento de vários que tentaram chegar a outras comunidades ou comercializar produtos nas cidades próximas - leia-se próxima duas semanas ou mais de viagem pelos rios - tambpem contaram as formas com as quais alguns quilombos de forma astuciosa conseguiram "driblar" expedições que procuravam africanos fugitivos, o uso e exploração de índios da região para que levassem aos locais certos...enfim as narrativas populares - várias vezes rejeitadas no mundo acadêmico - aproxima as histórias sufocadas da formação do nosso país, talvez por isso são tão incomodam tanto.

BRASIL: A LAGOA DOS NEGROS
José Ribamar Bessa Freire
17/01/2010 - Diário do Amazonas

Os índios mapuches e os camponeses que vivem às margens de uma lagoa, ao sul do Chile, juram que, de vez em quando, aparecem boiando no espelho d’água cabeças negras, com cabelo pixaim. Dizem que as cabeças vão surgindo, uma depois da outra. Dizem que ficam de bubuia, flutuando por um instante fugaz e, depois, voltam para o fundo da lagoa, conhecida, por isso, como Laguna de los Negros. Algumas histórias que ainda hoje circulam falam em oito cabeças, outras em vinte e até mais.

Já tentaram fotografar as aparições, mas elas se mostram apenas em uma fração de segundo. Só quem pode vê-las é o morador da região, que sabe das coisas. Para os citadinos desinformados, vindos de fora, elas são invisíveis. Aí, como nada vêem, esses analfabetos da oralidade acham que tais “visagens” e “histórias de assombração” não passam de “fantasia de índio”, “superstição de camponês”, “crendice absurda”, “invenção”, “mentira” ou, no melhor dos casos, “puro folclore”, incompatível com a modernidade, a tecnologia, o pensamento científico, a metrópole, a internet.
Foi aí que um historiador, para quem só vale o que está escrito, vasculhou arquivos em busca de pistas que explicassem o fato. Descobriu na documentação antiga que o colonizador espanhol decapitava os índios ou amarrava uma pedra no pescoço deles, atirando-os no fundo daquela lagoa, que ainda guarda o mistério e o encanto do tempo em que foi mais larga e profunda.
O último registro escrito dá conta de um motim ocorrido em janeiro de 1804 no navio negreiro Prueba, quando 72 escravos trazidos da África em jaulas, como bichos, se revoltaram, mataram 18 marinheiros e exigiram que o capitão, chamado Carreño, voltasse pro Senegal. No retorno, um navio norteamericano atacou o barco e trucidou os revoltosos. Oito sobreviventes presos – um deles de nome Mure - foram condenados à morte e atirados no fundo da lagoa, de onde, de tempos em tempos, emergem.
As aparições
O pesquisador uruguaio Nestor Ganduglia, que sabe ler oralidades, considera as aparições como uma estratégia de preservação da memória popular. É assim que as pessoas humildes fazem: não escrevem livros, mas gravam suas experiências, quase sempre amargas e dolorosas, na paisagem, nos costumes, nos rituais, nos cantos, nas vozes que transmitem suas narrativas lendárias, criando redes subterrâneas que mantêm a memória viva em um mundo dominado por versões oficiais – ele diz.
A História oficial - relato escrito dos vencedores - apaga os crimes hediondos e afoga as atrocidades dos poderosos no lago do olvido. Milhares de ossadas permanecem insepultas nas águas da nossa América. Para serem lembradas é que, de vez em quando, sobem à tona na voz do povo, que resiste ao esquecimento e manifesta seu assombro, ao repassá-las oralmente de uma geração a outra, transpondo as barreiras do tempo.
Eis o que eu queria dizer: o Brasil é uma enorme Lagoa dos Negros. Os horrores da escravidão foram esquecidos e os bandeirantes, que assassinaram índios, transformados em heróis. As narrativas das comunidades quilombolas, dos povos de terreiro e das aldeias indígenas continuam fora da sala de aula, do museu, do monumento e da mídia, apesar de uma lei recente obrigar sua inclusão nas escolas.
O atual debate sobre a ditadura militar revela como a memória é apagada.
Durante vinte anos, a repressão política seqüestrou, prendeu, espancou, torturou e exilou milhares de pessoas, deixando um saldo de 144 mortos sob tortura e 125 desaparecidos, cujos cadáveres não foram localizados, entre eles o do amazonense Thomaz Meirelles, aqui citado no domingo passado.
O ministro da Defesa, Nelson Jobim, ex-ministro da Justiça no governo FHC, de forma apressada, declarou ontem que os militares brasileiros desaparecidos sob os escombros no terremoto do Haiti não estão mais vivos.
“A expressão desaparecido é técnica. Significa corpo não encontrado” – disse, prometendo localizar os cadáveres. Não quer, porém, igual tratamento aos desaparecidos políticos, que permanecem soterrados nos inacessíveis arquivos dos órgãos de repressão.
As memórias
Na disputa pela memória, o presidente Lula assinou decreto, contendo um montão de resoluções aprovadas na 11ª. Conferência Nacional de Direitos Humanos, entre as quais a criação da Comissão da Verdade, encarregada de esclarecer “as violações de direitos humanos praticadas no contexto da repressão política” durante a ditadura militar.
Lula explicou, anteontem, em entrevista a TV Mirante, no Maranhão, que o decreto manifesta apenas uma intenção: “O governo pode aceitar tudo, pode aceitar 80% ou 30%. Uma parte pode ser transformada em lei, a outra fica no programa”. A proposta pode ou não ser encaminhada como projeto de lei ao Congresso Nacional, onde vai ser analisada, discutida, emendada e votada, podendo ser aprovada ou rejeitada. O que a Comissão da Verdade vai fazer depende disso tudo e dos poderes a ela atribuídos.
Embora a Comissão da Verdade seja apenas uma proposta indicativa, bastante tímida, sem poder legal, mesmo assim os comandantes militares reagiram contra ela como senhores e donos da memória nacional, papel que não lhes cabe constitucionalmente . Não querem sequer que a idéia seja discutida.
Foram intransigentes. Exigiram que a expressão “repressão política” fosse apagada no novo decreto. Foram obedecidos. Os arquivos militares continuam fechados. Só nos resta resistir, mantendo os torturados de bubuia no lago de nossa memória.
A tortura é considerada ilegal até mesmo pela legislação arbitrária de qualquer ditadura. Mas os torturadores só foram julgados – como Pinochet no Chile, depois de preso em Londres - quando os países que praticaram esse crime hediondo foram redemocratizados: Chile, Argentina, Uruguai, Portugal, Espanha, Grécia. Os processos judiciais atestaram a existência da democracia e contribuíram para recuperar a memória.
A Argentina acaba de abrir os arquivos da ditadura. O Chile investiu US$20 milhões para construir o Museu da Memória e dos Direitos Humanos, um edifício de cinco andares, projetado – oh ironia! – por um escritório paulista de arquitetura. Tem um arquivo no subsolo aberto para consulta, milhares de fotos, cartazes, textos e testemunhos em vídeos com crianças em busca de seus pais e avós, além de um espaço – o velatón – onde o acrílico reproduz as velas que eram acesas nos locais de execução.
Revanchismo? Insensatez? Não, apenas compromisso com a História. Cutucar a onça com vara curta? Pode ser se não sabemos o tamanho da nossa vara. Mas ninguém quer torturar os torturadores, apenas que respondam, dentro da lei, pelos atos que cometeram, assegurando- lhes um direito que eles não concederam às suas vítimas: o de ampla defesa. A impunidade deles contribui para que, ainda hoje, a tortura continue praticada em nosso país contra presos comuns, de origem pobre.
Muitas cabeças ainda vão boiar no lago da memória, até que o Brasil, efetivamente, se redemocratize e tenha consciência de que o futuro só se transforma se encararmos o passado. Por isso é que a memória é tão importante.



OBS: Neste momento, ouço um documentário na TV Senado, em que um deputado Márcio Moreira Alves, chama a sociedade, em especial as mulheres, que se faça um boicote em 7 de Setembro... O que as mulheres da Atenas fizeram... Que boicotem impedisse que seus filhos e filhas desfilem com os militares, os mesmos que os roubam e torturam. O momento é outro, mas o artigo de Bessa nos leva a nos posicionarmos, chama nossa atenção para a necessária tomada de posição dos brasileiros para que a história não seja transformada em "viagem" dos que sofreram as dores da tortura e a história não seja apagada. de Cuiabá, Beleni, 25/01/2010.

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Haiti - A Maldição Branca por Eduardo Galeano









Na última semana, entrou na mídia mundial o Haiti em face do terremoto que ceifou a vida de milhares de pessoas, entres elas de alguns brasileiros/as,a mais conhecida, Dona Zilda Arns.

Não vou entrar no debate sobre a questão haitiana, e a ocupação bélica em nome da PAZ comandada pelo Exercíto brasileiro e suas contradições no Haiti, onde busca demonstrar ao mundo a liderança latino-americana que espelha suas ações no primo rico EUA.

Não irei discutir sobre a questão negra no Haiti, primeiro país das Américas a abolir a escravidão e os negros enquanto protagonistas comandaram uma revolução sufocada pela "ordem" mundial.

Não irei repetir Gil e Caetano - O Haiti é aqui, o Haiti não é aqui - porém além da catástrofe, chama atenção as declarações do Cõnsul do Haiti no Brasil na semana passada - estilo Boris Casoy - colocando a possível razão do terremoto na religiosidade de matriz afro, assim como vendo enquanto oportunidade benéfica para o país na agenda internacional a morte das pessoas naquele país.

Cumpre nesse momento deixar a matéria do Cônsul, pensar nas ações em torno desta comprovação da existência do racismo institucional no Haiti como aqui, assim como, deixar um texto de 2004 do escritor Eduardo Galeano sobre " A maldição branca no haiti".

Consul do Haiti diz que terremoto pode ter ocorrido porque haitianos praticam vodu
Por Redação Yahoo! Brasil


O cônsul geral do Haiti em São Paulo, Gerge Samuel Antoine, apareceu em reportagem exibida na noite desta quarta-feira no programa "SBT Brasil" dizendo que o terremoto está "sendo bom" para seu trabalho e que a tragédia pode ter ocorrido por causa da religião praticada por boa parte dos haitianos, descendentes de africanos. O vodu é uma delas.
Sem saber que estava sendo gravado pela equipe da repórter Elaine Cortez, o cônsul diz um interlocutor: "A desgraça de lá está sendo uma boa pra gente aqui, fica conhecido. Acho que de, tanto mexer com macumba, não sei o que é aquilo... O africano em si tem maldição. Todo lugar que tem africano lá tá f..."
O âncora do programa, Carlos Nascimento, informou que após a gravação foi feito um outro contato com o cônsul, interpelando-o sobre as declarações. Antoine disse que se sente preparado para o cargo.

http://br.noticias.yahoo.com/s/15012010/48/manchetes-consul-haiti-sao-paulo-diz.html



A maldição branca
Eduardo Galeano

http://zequinhabarreto.org.br/?p=796
http://clio-historiaememoria.blogspot.com/2009/10/maldicao-branca-eduardo-galeano.html

No primeiro dia deste ano a liberdade completou dois séculos de vida no mundo. Ninguém se inteirou disso, ou quase ninguém. Poucos dias depois, o país do aniversário, Haiti, passou a ocupar algum espaço nos meios de comunicação; não pelo aniversário da liberdade universal, mas porque ali se desatou um banho de sangue que acabou derrubando o presidente Aristide.
O Haiti foi o primeiro país onde se aboliu a escravidão. Contudo, as enciclopédias mais conhecidas e quase todos os livros de escola atribuem à Inglaterra essa histórica honra. É verdade que certo dia o império que fora campeão mundial do tráfico negreiro mudou de idéia; mas a abolição britânica ocorreu em 1807, três anos depois da revolução haitiana, e resultou tão pouco convincente que em 1832 a Inglaterra teve de voltar a proibir a escravidão.
Nada tem de novo o menosprezo pelo Haiti. Há dois séculos, sofre desprezo e castigo. Thomas Jefferson, prócer da liberdade e dono de escravos, advertia que o Haiti dava o mau exemplo, e dizia que se deveria “confinar a peste nessa ilha”. Seu país o ouviu. Os Estados Unidos demoraram 60 anos para reconhecer diplomaticamente a mais livre das nações. Por outro lado, no Brasil chamava-se de haitianismo a desordem e a violência. Os donos dos braços negros se salvaram do haitianismo até 1888. Nesse ano o Brasil aboliu a escravidão. Foi o último país do mundo a fazê-lo.
O Haiti voltou a ser um país invisível, até a próxima carnificina. Enquanto esteve nas TVs e nas páginas dos jornais, no início deste ano, os meios de comunicação transmitiram confusão e violência e confirmaram que os haitianos nasceram para fazer bem o mal e para fazer mal o bem. Desde a revolução até hoje, o Haiti só foi capaz de oferecer tragédias. Era uma colônia próspera e feliz e agora é a nação mais pobre do hemisfério ocidental. As revoluções, concluíram alguns especialistas, levam ao abismo. E alguns disseram, e outros sugeriram, que a tendência haitiana ao fratricídio provém da selvagem herança da África. O mandato dos ancestrais. A maldição negra, que empurra para o crime e o caos.
Da maldição branca não se falou.
A Revolução Francesa havia eliminado a escravidão, mas Napoleão a ressuscitara:
- Qual foi o regime mais próspero para as colônias?
- O anterior.
- Pois, que seja restabelecido.
E, para substituir a escravidão no Haiti, enviou mais de 50 navios cheios de soldados. Os negros rebelados venceram a França e conquistaram a independência nacional e a libertação dos escravos.
Em 1804, herdaram uma terra arrasada pelas devastadoras plantações de cana-de-açúcar e um país queimado pela guerra feroz. E herdaram “a dívida francesa”. A França cobrou caro a humilhação imposta a Napoleão Bonaparte. Recém-nascido, o Haiti teve de se comprometer a pagar uma indenização gigantesca, pelo prejuízo causado ao se libertar. Essa expiação do pecado da liberdade lhe custou 150 milhões de francos-ouro. O novo país nasceu estrangulado por essa corda presa no pescoço: uma fortuna que atualmente equivaleria a US$ 21,7 bilhões ou a 44 orçamentos totais do Haiti atualmente. Muito mais de um século demorou para pagar a dívida, que os juros multiplicavam. Em 1938, por fim, houve e redenção final.
Nessa época, o Haiti já pertencia aos bancos dos Estados Unidos.
Em troca dessa dinheirama, a França reconheceu oficialmente a nova nação. Nenhum outro país a reconheceu. O Haiti nasceu condenado à solidão. Tampouco Simon Bolívar a reconheceu, embora lhe devesse tudo. Barcos, armas e soldados lhe foram dados pelo Haiti em 1816, quando Bolívar chegou à ilha, derrotado, e pediu apoio e ajuda. O Haiti lhe deu tudo, com a única condição de que libertasse os escravos, uma idéia que até então não lhe havia ocorrido. Depois, o herói venceu sua guerra de independência e expressou sua gratidão enviando a Port-au-Prince uma espada de presente. Sobre reconhecimento, nem uma palavra.
Na realidade, as colônias espanholas que passaram a ser países independentes continuavam tendo escravos, embora algumas também tivessem leis que os proibia. Bolívar decretou a sua em 1821, mas, na realidade, não se deu por inteirada. Trinta anos depois, em 1851, a Colômbia aboliu a escravidão, e a Venezuela em 1854.
Em 1915, os fuzileiros navais desembarcaram no Haiti. Ficaram 19 anos. A primeira coisa que fizeram foi ocupar a alfândega e o escritório de arrecadação de impostos. O exército de ocupação reteve o salário do presidente haitiano até que este assinasse a liquidação do Banco da Nação, que se converteu em sucursal do City Bank de Nova York. O presidente e todos os demais negros tinham a entrada proibida nos hotéis, restaurantes e clubes exclusivos do poder estrangeiro. Os ocupantes não se atreveram a restabelecer a escravidão, mas impuseram o trabalho forçado para as obras públicas.
E mataram muito. Não foi fácil apagar os fogos da resistência. O chefe guerrilheiro Charlemagne Péralte, pregado em cruz contra uma porta, foi exibido, para escárnio, em praça pública.
A missão civilizadora terminou em 1934. Os ocupantes se retiraram deixando no país uma Guarda Nacional, fabricada por eles, para exterminar qualquer possível assomo de democracia. O mesmo fizeram na Nicarágua e na República Dominicana. Algum tempo depois, Duvalier foi o equivalente haitiano de Somoza e Trujillo.
E, assim, de ditadura em ditadura, de promessa em traição, foram somando-se as desventuras e os anos. Aristide, o cura rebelde, chegou à presidência em 1991. Durou poucos meses. O governo dos Estados Unidos ajudou a derrubá-lo, o levou, o submeteu a tratamento e, uma vez reciclado, o devolveu, nos braços dos fuzileiros navais, à Presidência. E novamente ajudou a derrubá-lo, neste ano de 2004, e outra vez houve matança. E de novo os fuzileiros, que sempre regressam, como a gripe.
Entretanto, os especialistas internacionais são muito mais devastadores do que as tropas invasoras. País submisso às ordens do Banco Mundial e do Fundo Monetário, o Haiti havia obedecido suas instruções sem pestanejar. Eles o pagaram negando-lhe o pão e o sal.
Teve seus créditos congelados, apesar de ter desmantelado o Estado e liquidado todas as tarifas alfandegárias e subsídios que protegiam a produção nacional. Os camponeses plantadores de arroz, que eram a maioria, se converteram em mendigos ou emigrantes em balsas. Muitos foram e continuam indo parar nas profundezas do Mar do Caribe, mas esses náufragos não são cubanos e raras vezes aparecem nos jornais.
Agora, o Haiti importa todo seu arroz dos Estados Unidos, onde os especialistas internacionais, que é um pessoal bastante distraído, se esquecem de proibir as tarifas alfandegárias e os subsídios que protegem a produção nacional.
Na fronteira onde termina a República Dominicana e começa o Haiti, há um cartaz que adverte: o mau passo.
Do outro lado está o inferno negro. Sangue e fome, miséria, pestes…
Nesse inferno tão temido, todos são escultores. Os haitianos têm o costume de recolher latas e ferro velho e, com antiga maestria, recortando e martelando, suas mãos criam maravilhas que são oferecidas nos mercados populares.
O Haiti é um país jogado no lixo, por eterno castigo à sua dignidade. Ali jaz, como se fosse sucata. Espera as mãos de sua gente. (IPS/Envolverde)

Eduardo Galeano é escritor e jornalista uruguaio, autor de "As Veias Abertas da América Latina" e "Memórias do Fogo"

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Direitos Humanos sob conflito - Por Roberto Efrem









DEBATE ABERTO

Os Direitos Humanos sob conflito

O que temem os setores conversadores de nossa sociedade - de Jobim aos seus militares, do DEM à CNA munida de seus proclamados demônios – não é efetivamente a legalização do aborto ou a Comissão de Verdade e Justiça.

Roberto Efrem Filho, na Agência Carta Maior

A atual contenda simbólica acerca do III Programa Nacional de Direitos Humanos bem transparece o campo minado em que vivenciamos aquilo que nos acostumamos – talvez por conforto, talvez por funcionalidade - a chamar de democracia. Resta demonstrado, dia após dia, que o aprofundamento do processo democrático, ou seja, o efetivo exercício da democracia, não parece pertencer ao conceito de “democracia” próprio àqueles sujeitos midiática e hegemonicamente competentes para determinar, no espaço público, o que é e o que não é pronunciável nessa “sua” democracia.

O Programa Nacional de Direitos Humanos possui dois vícios estruturais certamente imperdoáveis sob o ponto de vista de nossas classes dominantes. O primeiro deles diz respeito à concepção de Direitos Humanos sob discussão no Programa. O segundo concerne ao fato de que tal Programa resulta de uma experiência democrático-participativa que – ao menos aparentemente – deu certo. Tratemos do primeiro.

A expressão “Direitos Humanos” encontrou em nossa história política resistências diversas e, por vezes, antagônicas. Sua reivindicação discursiva no Brasil nos tempos do regime militar, em razão das condições em que se encontravam os presos políticos e do cerceamento arbitrário de um sem número de direitos, esbarrou – principalmente – nos setores sociais conservadores, apoiadores do regime e reprodutores do infeliz cacoete retórico da ordem e do progresso, mas também se deparou com obstáculos no próprio campo das esquerdas. Uma versão sobremaneira controversa, mas, à época, mais ou menos valorizada, do marxismo rechaçou – e talvez continue a rechaçar – o discurso de defesa dos Direitos Humanos sob a alegação de que ele representaria um recuo em direção à edificação do socialismo. Através de uma leitura meio enviesada, meio mecanicista do fundamental trabalho de Marx intitulado “A Questão Judaica”, esses “marxistas” relegaram os Direitos Humanos ao arsenal argumentativo dos “reformistas” ou mesmo dos “capitalistas”.

Deu-se, contudo, que a crise atravessada pelo campo socialista nos idos das décadas de oitenta e noventa, somada à peculiar conjuntura da redemocratização do país e de promulgação da Constituição Federal de 1988, engendrou uma processual aproximação entre os membros do campo das esquerdas e a defesa dos Direitos Humanos. A lógica premente da luta por direitos conduzida pelos nascentes Movimentos Sociais – aqui incluídas as redes de Organizações Não-Governamentais, como é o caso do Movimento Nacional de Direitos Humanos – ratificou de modo cabal a introdução das pautas referentes aos Direitos Humanos nos debates das esquerdas. Exemplo disso é a incontestável dedicação de sujeitos capitais à construção da prática socialista no Brasil, tal qual o Movimento dos(as) Trabalhadores(as) Rurais Sem Terra, às questões relativas aos Direitos Humanos.

Arquitetou-se, portanto, uma histórica cumplicidade entre as esquerdas e a defesa desses direitos. Isto, de modo que parte considerável dos espaços, pertencentes à “sociedade civil”, de reivindicação dos Direitos Humanos, organiza-se conforme princípios progressistas e críticos às iniqüidades decorrentes do modo de produção capitalista, muito embora a perspectiva da construção do socialismo não pertença, em regra, a vários dos sujeitos nesses espaços envolvidos. Importa, contudo, que é em tais espaços que mais e mais se multiplica uma concepção dos Direitos Humanos segundo a qual esses direitos surgem em processos históricos de tomada de consciência coletiva, de compartilhamento de lutas sociais, ou, noutros termos, de diálogo e reconhecimento.

Longe de serem a abstração acertadamente criticada por Marx - e interessante, sobretudo, à criação de uma aparência democrática capaz de dissimular a realidade da existência dO humano burguês, branco e heterossexual como único sujeito de direitos – os Direitos Humanos cultivados pelos Movimentos Sociais pressupõem uma inexorável dialética: a de que homens e mulheres se humanizam na medida em que lutam por direitos e de que tais direitos se tornam Humanos devido às lutas de homens e mulheres. É, enfim, contra essa concepção, hoje presente no Programa Nacional de Direitos Humanos, que os setores conservadores de nosso país se erguem. Afinal, é a legítima luta de homens e mulheres por sua libertação que tem voz no Programa. Algo verificável seja nas conclamações pela legalização do aborto e da união entre pessoas do mesmo sexo, seja na reivindicação pela fundação de uma Comissão de Verdade e Justiça hábil a democraticamente descortinar o recente passado inglório do Estado brasileiro.

O segundo vício, por sua vez, recai, não sem alguma ironia, sobre a disputa simbólica pela determinação das fronteiras da democracia, ou seja, sobre até onde é possível caminhar. Pouco tempo depois de nosso mais reacionário espécime partidário modificar, não ao acaso, seu título, de “Liberal” (do PFL) para “Democrata” (do DEM), a democracia – figura que nunca recebeu muito crédito das classes dominantes brasileiras, senão como preleção legitimadora de seus interesses – torna-se alvo de exasperadas contestações. Explico.

O III Programa Nacional de Direitos Humanos é resultado das propostas aprovadas durante a última Conferência Nacional de Direitos Humanos. Conferências constituem espaços promovidos pelo Estado e dos quais participam sujeitos governamentais e não-governamentais. São ambientes abertos à participação, em que propostas são aprovadas ou não, em razão de um procedimento previamente estipulado. Tais Conferências, contudo, assim como tudo na “democracia” que conhecemos, apresentam-se como finas lâminas de dois gumes. Se elas são o máximo de participação democrática que conseguimos conquistar junto ao Estado, costumam também representar uma fenda em que os movimentos sociais costumam cair, notadamente porque estão elas estruturalmente mais afeitas a legitimar o Estado como virtualmente participativo do que a possibilitar uma real participação.

Ocorre que – e é esta a morada daquele vício imperdoável – a Conferência de Direitos Humanos responsável pelo III PNDH foi construída, desde o início, nas etapas estaduais, por sujeitos suficientemente organizados para obter através dela, a primeira pronúncia estatal acerca daquilo que suas lutas consubstanciam como Direitos Humanos. Nunca o Estado brasileiro houvera citado a possibilidade – sim, trata-se tão somente de uma possibilidade - de legalizar o aborto ou de criar uma Comissão de Verdade e Justiça. Agora, com o III PNDH, não restam mais ao Estado brasileiro quaisquer desculpas para desconhecer a presença de tais discussões. De fato, neste instante, o que temem os setores conversadores de nossa sociedade - de Jobim aos seus militares, do DEM à CNA munida de seus proclamados demônios – não é efetivamente a legalização do aborto ou a Comissão de Verdade e Justiça. Esses setores habilidosamente sabem que mudanças assim no ordenamento jurídico requerem o processo legislativo, a decisão do Congresso Nacional, e não um mero decreto presidencial que apenas publica um Programa produto de uma Conferência. Eles temem, em verdade, o que resta aí de simbólico, mas, nem por isso, imaterial: o que remonta à probabilidade de, no jogo “democrático”, no qual jamais acreditaram ou investiram, mas do qual se utilizam como recurso de justificação e disfarce deste mundo tão desigual, eles terem perdido mais uma batalha.


Roberto Efrem Filho é mestre em direito pela UFPE e docente do Departamento de Ciências Jurídicas da UFPB.

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

O Caso Boris Casoy - Matéria do Observatório da Imprensa













Charge do Blog - http://krollcartuns.blogspot.com/2010/01/charge-boris-casoy.html


CASO BORIS CASOY
O destino acerta suas contas

Por Celso Lungaretti em 5/1/2010


Na manhã de segunda-feira (4/1), as dezenas de postagens no YouTube referentes aos comentários que o apresentador Boris Casoy inadvertidamente fez sobre os garis no Jornal da Band já haviam sido vistas quase 1,2 milhão de vezes. A mais assistida estava na casa de 850 mil hits.

Se alguém ainda não sabe, o noticioso levou ao ar saudações de Ano Novo de dois simpáticos garis: um senhor branco já com cabelos brancos e um negro na faixa de 40 anos. Causaram ótima impressão, com seu ar digno e uma alegria que não parecia forçada. Depois, enquanto eram exibidas vinhetas, ouviu-se a voz de Casoy no fundo, comentando com a equipe:

"Que merda! Dois lixeiros desejando felicidades do alto das suas vassouras... dois lixeiros... o mais baixo da escala de trabalho!"

No dia seguinte Casoy pediu "profundas desculpas aos garis e aos telespetadores da Band" pelo que escutaram em razão de um "vazamento de áudio" (na verdade, só ouviram isso porque ele disse...). Fê-lo, entretanto, de maneira burocrática e pouco convincente, não aparentando estar nem um pouco arrependido do desprezo aristocrático que manifestou pelos trabalhadores humildes. As postagens relativas no YouTube não somavam hoje nem 100 mil exibições.

Lembrei-me da rainha Maria Antonieta recomendando aos pobres que, se não tinham pães, que comessem bolos. Perdeu a cabeça. Casoy teve mais sorte, só quebrou a cara...

Fiquei matutando sobre o destino e seus contrapesos. Às vezes a mesma pessoa é brindada com a sorte grande num momento e tira o azar grande adiante. Ou vice-versa.

Casoy é elitista, racista, conservador e reacionário desde muito cedo. Um velho companheiro que com ele cursou Direito no Mackenzie me contou: aos 23 anos, Casoy era um dos líderes da ala jovem do Comando de Caça aos Comunistas, que tinha nessa faculdade um de seus focos principais.

Mais: nos idos de 1964, Casoy chegou a ser citado em reportagem da revista Cruzeiro como membro destacado da juventude anticomunista.

A quartelada o beneficiou, claro: foi homem de imprensa de um ministro do governo Médici e do secretário da Agricultura de São, Herbert Levy, outra figurinha carimbada da direita. Mas, nem tinha texto de qualidade superior, nem era uma figura agradável na telinha, portanto estava direcionado para uma carreira mediana no jornalismo, não fosse uma moeda que caiu em pé.

Sete anos

Isto aconteceu quando o comando do II Exército aproveitou uma frase imprudente do cronista Lourenço Diaféria (sobre mendigos urinarem na estátua de Caxias) para intervir na Folha de S.Paulo.

Os militares exigiram a destituição do diretor de redação Cláudio Abramo (trotskista histórico), o afastamento de alguns profissionais (demitidos ou realocados) e o abrandamento da linha editorial.

O proprietário Octávio Frias de Oliveira, que sempre se definiu como comerciante e não jornalista, negociou. Servil, aceitou até substituir Abramo por um homem de absoluta confiança do regime militar: Casoy, que editava a coluna "Painel" (sobre os bastidores políticos), então um espaço dos mais secundários no jornal.

Igualmente secundário era Casoy para os leitores da Folha e para os próprios militantes/simpatizantes da esquerda. Suas posições fascistóides eram ignoradas pela maioria.

Aí, como diretor de Redação, calhou de ser ele o principal defensor do jornal num episódio de reação à censura. Ou seja, sob palco iluminado, o lobo teve seu momento de cordeiro, o caçador de comunistas maquilou sua imagem para a de defensor da liberdade de expressão.

Sua carreira deslanchou. Depois de comandar a redação da Folha por sete anos (saiu para dar lugar ao filho do patrão), voltou a editar a coluna "Painel", cuja importância crescera nesse ínterim. Finalmente, tornou-se conhecido pelo grande público como apresentador do Telejornal Brasil, do SBT, entre 1988 e 1997.

Justiça divina

Novamente os fados o bafejaram. Numa emissora que investia pouco em jornalismo e não tinha reportagens para mostrar que, quantitativa e qualitativamente, chegassem nem perto das exibidas pela Rede Globo, o jeito foi deixar crescer o espaço do apresentador.

Casoy pôde, assim, atuar como um âncora à moda dos EUA, fazendo comentários catárticos sobre episódios de corrupção política (principalmente) que eram concluídos com um ou outro de seus bordões habituais: "Isto é uma vergonha!" é "É preciso passar o Brasil a limpo!".

Ou seja, para telespectadores da classe "C" e "D", ele passou a personificar o justiceiro que atirava a verdade na cara dos poderosos. É um público que, em sua ingenuidade, valoriza desmesuradamente essa justiça retórica e ilusória, sem perceber que, depois do desabafo, continua tudo na mesma...

Assim, por novo golpe do destino, um comunicador azedo conquistou a simpatia dos pobres e dos muito pobres, ao expressar seu inconformismo impotente face às agruras que os atingem e eles são incapazes de compreender em toda sua extensão.

É fácil canalizar seu justo ressentimento contra os políticos desonestos. Tanto quanto é conveniente, para os poderosos, mantê-los na ignorância de que o maior vilão em suas sofridas existências atende pelo nome de capitalismo.

Servindo tão bem os interesses do sistema, Casoy atravessou as duas últimas décadas como um aclamado populista televisivo de direita.

Só teve alguns percalços ao exagerar na dose contra o governo Lula, mas seus pés de barro continuaram, tanto quanto possível, ignorados pelo grande público. Agora, um acaso revelou ao Brasil inteiro que indivíduo insensível e preconceituoso é, na verdade, Boris Casoy.

Alguns viram este episódio como um exemplo da justiça divina em ação. Quem sabe?

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