segunda-feira, 7 de janeiro de 2008

Esquinas imaginárias

Lembro que certo dia acordei mais cedo do que era habitual, preparei um café, acendi o cigarro e sentei em uma cadeira confortável. Abri um livro antigo que teimava em permanecer acumulando poeira na instante...Passei o olhar e minha pouca atenção por algumas páginas, parei em uma das esquinas escritas...era uma linha imaginária, um susto previsível, uma lâmpada iluminado um coqueiro, o coqueiro que teimava querer ser mangueira, mesmo sem conseguir florescer o mesmo fruto, ou possibilitar a mesma sombra...Pensava em V de Moraes e em P de Neruda: " Boa noite, Pablo Neruda. Neste instante . Ouvi cantar o primeiro pássaro da primavera. E pensei em ti. O primeiro pássaro da primavera. Cantou, parece incrível. Mas ainda existem pássaros. Que cantam em noites de primavera. Estou sozinho e tudo é silêncio. Meus filhos. Foram dormir. Minha revolta, provisoriamente. Também foi dormir. A verdade, poeta. É que te tenho presente, a cerveja está bem gelada. E o pior ainda está por vir. Hoje pensei em Lorca. Vi-o nitidamente. Caminhando entre os soldados. Seus olhos. Me olhavam entre dois canos de fuzis, desfigurados. Hoje soube que teve medo, teve medo de morrer. Teve medo, mas não dizia nada. Eu também tenho medo, meu irmão. Quem, em verdade. Com tanto amor à vida não tem medo?Lorca. Amava a vida, era um pássaro. Lembro o dia. Em que atirei num passarinho, eu era menino. Vi-o. Por entre a mira da espingarda, depois tombou ensanguentado. Debrucei-me sobre ele, agonizava, tinha medo. Mas também não se queixava. É estranho, poeta, é tudo imensamente estranho. Esta noite, esta presença tua e esta certeza. De que a morte ronda. Gabriela, tua velha mestra. Partiu, foi para o México. Quando a deixei no avião. Olhou-me com ternura e muita paz. Depois beijou-me o rosto e disse: NO SÉ SI NOS VEREMOS MÁS. Agora, no entanto, a noite, amigo. Se estende sobre nós, plantada de lírios. Faiscantes. Lorca morreu. Outros morreão. Talvez tu, talvez eu. O inimigo. Possui fuzis, o que não impede a primavera. De ser saudada pelos pássaros. A ti te atacaram pelas costas. Os vendilhões de tua pátria em forma de faca. Tua pátria em forma de faca, que um dia. Há de se erguer ensanguentada. Do sangue da covardia e da maldade. Ah, que esta é a soma de muitas noites. Poeta amigo...É a noite. De 14 de abril de 1948: dois dias depois. De sufocada a revolução da Colômbia. Mais uma. Que foi sufocada. Quantas serão precisas, Pablo. Quantas retaliações, quantos cadáveres?Serão precisos muitos cadáveres, poeta. Talvez o meu, talvez o teu e até o da mulher amada. O fato de se acordar e se estar vivo. Já não quer dizer nada. Mas é importante resistir. Mesmo com a boca amordaçada. Como Miguel Hernandez. Como Fucjik. Como Hikmet. Como Eisler. Como os humildes mortos ignorados, torturados. Desfibrados a pancada: a grande massa cujos ossos. Ilumina o caminho, o único possível. Dentro da ignomínia e da desgraça. Hoje mais do que nunca o mundo avança. Para uma Aurora ainda aprisionada. Tentemos resgatá-la com poesia. Cada poema valendo uma granada. Como disseste imortalmente um dia. No teu " Canto de amor a Stalingrado". LOS ANGELES , 1948 VINICIUS DE MORAES - EM HISTORIA NATURAL DE PABLO NERUDA : A ELEGIA QUE VEM DE LONGE.

Nenhum comentário: