sábado, 22 de novembro de 2008

UM INSTANTE SEMPRE - Por Diogo Monteiro



Alguns amigos que tenho fazem parte da minha família, como se diz por aí " sem cota sanguínea", eles conhecem meus passos, caminhos e descaminhos mais do que qualquer outra pessoa.
Na maioria das vezes são peças que montam meu quebra-cabeça intenso, constituem marcas inconstantes, distorcidas e pouco palpáveis, são as lembranças sobre meu próprio passado, ou seja eles são meu passado, presente e projeto com eles meus futuros, serão os tios dos/as meus/minhas filhos/as.
Esse cara em especial além de outras virtudes e vícios, escreve bem e esconde pelas vias virtuais.
Não avisa por onde está deixando seus rastros literários, mas de quando em vez eu acho algo dele, mais uma vez bom demais.
O texto está no blog do Opinião Pernambuco - o link está ao lado - quem comanda esse suspiro de democracia na TV Pública é outro amigo o Cris, vulgo Cristiano Ramos.
UM INSTANTE SEMPRE
Todos perceberam o momento exato em que dona Julieta começou a morrer realmente. Não foi quando sua respiração tornou-se longa e descompassada, como se seus pulmões tragassem areia, e os sulcos do seu pescoço tornaram-se valas contráteis. Não foi quando as pontas de seus pés arroxearam-se, indicando que o coração tinha preguiça - ou, talvez, lhe faltasse um motivo palpável - de continuar com o trabalho que iniciara há tantos anos repetidos. Não foi nem mesmo quando, após três dias de imobilidade, ela tornou a cabeça para o lado em que sentavam os presentes naquele último quarto. Souberam que dona Julieta estava morrendo quando notaram que sua boca, embora não emitisse som, acompanhava a última Salve Rainha do rosário desfiado pelas três velhinhas automáticas que a velavam - uma irmã de quem guardava mágoas demais, mas não suficientes; uma prima que ressurgiu de um passado quase esquecido, assim que o câncer se fez anunciar; e uma vizinha dogmática, sempre pronta a rezar pelos mortos, ou quase, de quem quer que fosse. E nenhuma das três percebeu, que passaram a seguir a marcação dos lábios mudos dela. E ninguém entendeu porque, quando dona Julieta acabou de não dizer: "Rogai por nós Santa Mãe de Deus, para que sejamos dignos das promessas de Cristo", sua boca se fechou, como se quisesse guardar sua alma dentro de si, como se tivesse ainda algo a dizer que não queria. É que ela um dia disse - e ninguém jamais lembraria - que achava muito feio alguém morrer com a boca aberta.
E ela prendeu dentro de si o seu suspiro derradeiro, como se não exalá-lo, pudesse torná-lo eterno.

Diogo Monteiro é escritor e jornalista. Este conto faz parte do livro inédito Instruções para atravessar paredes.

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